fonte: O Globo
A exposição ao vírus da zika no útero materno ou logo após o nascimento pode trazer sequelas que só serão observadas muito mais tarde na vida da criança. O alerta é de um grupo de cientistas brasileiras que liderou um experimento inédito para tentar identificar possíveis consequências de longo prazo da infecção — chamada de “síndrome congênita do vírus da zika” —, em especial em crianças que não apresentam suas sequelas mais visíveis, como a microcefalia, observada apenas em cerca de 10% delas.
A principal conclusão do trabalho é que pais e profissionais de saúde devem ficar atentos ao eventual aparecimento de problemas motores, cognitivos ou comportamentais nessas crianças à medida que cresce a geração atingida pela epidemia da doença no país entre 2015 e 2016.
Segundo as pesquisadoras, os resultados da experiência, feita com camundongos e relatada em artigo publicado nesta quarta-feira no prestigiado periódico científico “Science Translational Medicine”, apontam para a ocorrência de crises convulsivas espontâneas na infância que podem se estender e serem deflagradas quimicamente na vida adulta. Há risco, ainda, de distúrbios motores e cognitivos que mais tarde podem evoluir para transtornos de memória e psiquiátricos, entre outras perturbações.
— As pessoas têm uma ideia de que só os bebês que nasceram com microcefalia foram infectados e estão sujeitos a essas sequelas. Mas a verdade é que não — diz Andrea Da Poian, virologista do Instituto de Bioquímica Médica Leopoldo de Meis, da UFRJ, e uma das líderes do estudo.
Ela ressalta que o vírus é capaz de infectar crianças que não nascem com sintomas visíveis, como a microcefalia, mas que podem apresentar problemas neurológicos, cognitivos e de comportamento que se manifestem seja agora, seja no futuro.
— Nosso estudo é um alerta de que a microcefalia é apenas uma das consequências desta infecção. Não existe só a microcefalia. Nós mostramos que pode-se ter outros danos cognitivos e neurológicos decorrentes dela que, mesmo que a criança se recupere, podem voltar a se manifestar depois, na vida adulta — destaca Andrea.
No experimento, as cientistas infectaram camundongos “selvagens” — isto é, sem alterações genéticas ou outras interferências em seu organismo — com uma linhagem do vírus da zika retirada de um paciente do Recife, em Pernambuco, na época da epidemia. O vírus foi retirado do paciente apenas três dias depois de seu nascimento. As cientistas usaram também um outro grupo de animais não infectados, servindo como controle. A partir disso, elas analisaram o desenvolvimento dos animais e os submeteram a diversos testes para avaliar suas capacidades motoras e cognitivas.
CONVULSÕES FREQUENTES
Já de cara, os camundongos infectados apresentaram problemas como menor ganho de massa corporal e maior mortalidade do que os do grupo de controle, assim como atrofia (redução no tamanho) do cérebro. Tudo resultado da rápida replicação do vírus. Além disso, quase 65% dos animais passaram a sofrer convulsões apenas nove dias depois da infecção com o vírus. Essa proporção subiu para quase 90% aos 12 dias, e depois recuou para 30% aos 18 dias, com os episódios cessando com o passar do tempo.
Mas, mesmo depois de adultos, estes camundongos também se mostraram mais vulneráveis a convulsões induzidas por medicamentos, o que indica que o desequilíbrio químico de seus cérebros persistiu muito além da fase aguda da infecção.
Observações similares também foram feitas com relação ao desenvolvimento motor e cognitivo dos camundongos infectados. Eles apresentaram piores desempenhos em testes feitos tanto nos primeiros dias após a infecção — isto é, na sua “infância” e “juventude” —, quanto mais de três meses depois, quando eles já eram “adultos”. Os camundongos atingidos pela zika também demonstraram dificuldades de memória e sociabilidade na fase adulta, como falhas em distinguir entre um objeto familiar e um novo e comportamentos de isolamento, principalmente entre as fêmeas.
MODELO CONSIDERADO CONFIÁVEL
Julia Clarke, que é também uma das líderes do estudo e é neurocientista da Faculdade de Farmácia da UFRJ, destaca que, embora o experimento tenha sido feito com camundongos, seus achados são muito informativos quanto aos possíveis problemas de longo prazo trazidos pela síndrome congênita do vírus da zika. Isso porque, apesar de os animais só terem sido infectados após o nascimento, esta fase de seu desenvolvimento corresponde à dos fetos humanos nos últimos meses de gestação, situação na qual, apesar de em geral não nascerem com microcefalia — normalmente associada à exposição ao vírus ainda no primeiro trimestre da gravidez —, eles ainda podem sofrer danos neurológicos.
Além disso, estudos prévios do cérebro de bebês e fetos afetados pelo vírus revelaram marcadores biológicos, como calcificações e alterações celulares nos neurônios, similares às observadas nos camundongos da experiência.
— Tudo isso sugere que temos um bom modelo para estudar essas possíveis sequelas de longo prazo da zika — diz ela. — Então, mesmo que ele não nos permita extrapolar e dizer, por exemplo, quantos humanos expostos terão crises convulsivas, ele nos permite dizer que devemos ficar atentos porque estes pacientes podem desenvolver essas crises, esses problemas cognitivos e de comportamento.
PACIENTES ‘NEGLIGENCIADOS’
Julia também ressalta que, até agora, os estudos sobre as sequelas da zika se focaram muito em desvendar os mecanismos pelos quais o vírus causa a microcefalia e outros problemas neurológicos, sem se preocupar com seus efeitos de longo prazo.
— Temos cerca de 90% de pacientes expostos ao vírus e sem microcefalia que não estão sendo nem olhados por estes estudos — avalia. — Mas estes pacientes também podem apresentar um comprometimento sério em diversos aspectos: cognitivos, motores e comportamentais. Esses pacientes precisam estar aos olhos dos profissionais de saúde e dos familiares. São sintomas e problemas que talvez nem sejam imediatamente associados ao vírus no futuro dessas pessoas, mas que podem se dever justamente à infecção que aconteceu na sua gestação, muitos anos antes do seu eventual aparecimento, numa consequência tardia desta exposição que nosso modelo previu.